domingo, 22 de março de 2020

Os primeiros missionários no Cabo do Norte (parte do Amapá) no século XVII


Bruno Rafael Machado Nascimento
Mestre em Ensino de História


No atual território do Estado do Amapá, no passado chamado de Cabo do Norte (referência a um acidente geográfico no litoral que servia de orientação para os navegadores que vinham comercializar com as populações indígenas), e que em 1637 tornou-se uma capitania hereditária doada pelo rei Felipe da União Ibérica à Bento Maciel Parente com o mesmo nome. Nesta região viveram várias sociedades, como por exemplo, Tucujus, Aruãs, Maraunus, Maraunizes, Maracúrios Oivanecas, Aricorés, Palikur, Maraones, Cumaú, Touré, dentre outros povos nativos. Antes dos lusitanos chegarem, os indígenas mantinham relações comerciais e de trabalho com holandeses, ingleses, irlandeses e franceses. Apenas na segunda metade do século XVII que os portugueses conseguiram expulsar os outros europeus. Os primeiros religiosos foram enviados por Portugal para catequizar os povos que viviam na região e evitar que os europeus mantivessem contatos com eles e assim por meio das missões expandir o território. Dessa forma, o texto tem objetivo de revelar quem foram esses missionários no século XVII? Como viveram? Quais as suas dificuldades? Como os indígenas agiram diante da intrusão?
       Do ponto de vista dos padres, a região da Amazônia colonial oferecia alguns desafios. O primeiro foi a carência de missionários para dar conta da imensidão do território. Observe o relato do padre jesuíta Luís Figueira em seu escrito ao rei Filipe no ano de 1637: Nem só o gentio do Maranhão e Pará está desamparado no espiritual; mas também os mesmos portugueses por falta de prelado [...] morrem os portugueses sem confissão, e estão anos e anos sem missa” (Memorial sobre as terras e gentes do Maranhão, Grão-Pará e rio das Amazonas que o padre Luís Figueira enviou a El-Rei D. Filipe IV em 1637). Especificamente à região do atual Amapá, os missionários Capuchos de Santo Antônio reclamavam das condições climáticas, dos alagamentos, da resistência dos indígenas à catequese, ao ponto de resumirem da seguinte forma a vida neste território: é odiosa a palavra do Cabo do Norte [região do atual Amapá], a que todos chamam cabo da morte” (Exposição dos franciscanos, de julho e agosto de 1698 e julho de 1699).

Os Capuchos de Santo Antônio

     Os primeiros missionários a entrarem no Cabo do Norte foram os franciscanos Capuchos da Província de Santo Antônio que, com muita dificuldade, faziam no século XVII as “visitas” e fundaram aldeamentos no atual Amapá, onde chamavam essas terras de “doentias” devido, principalmente, as doenças que assolavam os indígenas e religiosos que lá viviam. Nesse mesmo século, os portugueses entraram em conflitos e expulsaram holandeses, ingleses, irlandeses que negociavam com os nativos. Os franciscanos fizeram-se presente nessas guerras, por exemplo, o frei Cristovão de São José  acompanhou o capitão-mor Luís de Aranha na expulsão de “estrangeiros”. Na época, era comum a presença de religiosos com os militares para ajudar, por exemplo, na “pacificação” de indígenas.
       Imagine as dificuldades enfrentadas pelos frades de Santo Antônio no início da cristianização das gentes que viviam na região. Eram poucos, enfrentavam as doenças, andavam na imensidão da floresta amazônica por meio de canoas conduzidas pelos nativos, não dominavam plenamente as línguas dos povos e, muitas vezes, corriam o risco de serem mortos pelos indígenas. Os franciscanos que andavam catequizando na região do rio Araguari e de Macapá denunciavam a presença constante dos franceses que vindos da Guyane (Guiana francesa) entravam em território português e comercializavam com as gentes do Cabo do Norte. Os capuchinhos que por aqui catequizavam focaram as suas ações nos Aruãs e nos Tucujus que não aceitavam facilmente a evangelização, pois os missionários tentavam obrigá-los a fazer orações, participar das celebrações e mudar a sua cultura como, por exemplo, beber as suas bebidas.

Os missionários reclamavam que os Tucujus e os outros povos que viviam no rio Araguari, e na região de Macapá preferiam os franceses. Frei João de Santo Atanásio informava em carta de 1684 às autoridades coloniais da vinda de franceses para negociar escravizados com os indígenas. Para conquistá-los, davam presentes e até faziam o ato de “beber com eles” para “roubar os afetos e corações”. Além disso, denunciou que eles foram até as aldeias dos Tucujus (onde os frades catequizavam) negociar escravizados. Ainda no final do século XVII houve uma invasão francesa comandada por Ferroles, e os Aruãs e Tucujus ajudaram os franceses na tomada de um forte português na região de Macapá, destruíram as missões dos franciscanos e fugiram para Guiana francesa com medo da repressão portuguesa.

Os freis Manuel da Paixão e José de Santa Maria não desistiram e foram em busca de converter os Tucujus, Aruãs e Maraones. Devido a falta de apoio, recursos e doenças, os frades franciscanos de Santo Antônio resolveram abandonar as missões, mas em 1701 voltaram e fundaram uma missão no rio Jari, pois pela divisão das áreas de atuação das ordens missionárias que agiam na Amazônia, coube aos Capuchos de Santo Antônio, a pedido do rei de Portugal D. Pedro II em carta régia de 19 de março de 1693, que missionassem no “sertão chamado Cabo do Norte [atual Amapá], para que discorrendo pela margem do dito Rio compreendam os Rios do Jari, do Paru, e Aldeia de Urubuquara”.
São poucas as informações sobre a presença dos Capuchos de Santo Antônio no atual Amapá em um período tão distante, mas é necessário conhecer um pouco das suas histórias nessas terras que ainda hoje necessitam de padres para assistir espiritualmente e materialmente o seu povo. Porém, ao mesmo tempo em que os franciscanos estavam catequizando, vieram os padres da Companhia de Jesus (jesuítas) missionar neste território. Você conhece essa história? Vamos navegar por estes rios e igarapés cheios de fé e história.
 
Os missionários jesuítas 

         Assim como os franciscanos, também os padres jesuítas ou inacianos estiveram por “terras tucujus” no século XVII, na tentativa de catequese dos indígenas. Chegaram, inclusive, a estabelecer duas missões na região do rio Araguari, mas algo aconteceu. Dois padres foram mortos pelos nativos. Os indígenas ficaram com medo de que os missionários viessem ajudar os portugueses a escravizá-los, além disso, os religiosos queriam mudar os seus costumes e modos de viver deles.
       Os missionários inacianos vieram para o atual Amapá a pedido do rei de Portugal que na provisão real de 1º de abril de 1680 escreveu: “E particularmente encomendo aos superiores da Companhia que as primeiras destas missões sejam da outra banda do rio das Amazonas para a parte do Cabo do norte”. A função desses missionários era a “conversão do gentio [indígenas]” e evitar que eles passassem para o lado dos franceses. No dia seguinte, o padre Antônio Vieira pediu prioridade para os jesuítas fundarem missões no “Amapá” e indicou o missionário suíço Aloísio Conrado Pfeil, pois era excelente matemático e cartógrafo. Dessa forma, ele poderia elaborar um mapa da região e assim ele o fez. Ainda em 1680, os jesuítas Pier Luigi Consalvi, irmão Manuel Juzarte e o missionário Pfeil vieram fazer o reconhecimento. Mas apenas em 1687 o padre Aloisio Pfeil acompanhou o capitão-mor do Pará Antônio de Albuquerque na aproximação com os indígenas.
         A missão foi instalada no lago chamado Camonixari na região do rio Araguari, onde ficaram em julho de 1687 os padres jesuítas Antônio Pereira e Bernardo Gomes. O capitão-mor e Pfeil voltaram à Belém, mas passaram pela aldeia de Tabarapixi, onde o missionário, com ajuda dos soldados, construiu sua residência e nova missão. Os dois missionários da missão de Camonixari ficaram na casa do líder indígena e depois construíram uma pequena igreja. Buscaram catequizar os indígenas da redondeza, mas não foram bem aceitos. Quiseram obrigar os indígenas a mudar seus costumes da “bebedice” e “poligamia”.
       No mês de setembro de 1687, os indígenas decidiram atacar os missionários e os mataram. O primeiro a ser morto com uma paulada na cabeça foi o padre Antônio Pereira que estava em sua rede lendo um livro. Depois e da mesma forma mataram o padre Bernardo Gomes. O jesuíta João Felipe Bettendorff escreveu o livro Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão em 1697 e relatou sua visão sobre os fatos. Segundo ele, depois das mortes, os indígenas: “partiram-nos em pedaços, assando e comendo-os”, além disso, incendiaram a casa dos padres. A ideia do João Felipe Bettendorff foi exaltar o suposto martírio dos jesuítas no “Amapá” afirmando que os indígenas não aceitaram a pregação e, por isso, os mataram. Morreram em nome da fé.
       Segundo Bruno Nascimento (2018) em sua obra, Ad Majorem Dei Gloriam, parte dos envolvidos fugiu para Guiana francesa e outros foram capturados e julgados. Durante o processo, alguns indígenas foram ouvidos e deram suas respostas sobre as mortes. Disserem crer que os padres queriam roubá-los, que os proibiam de viver com suas mulheres (não possuíam o matrimônio), e que os franceses haviam dito a eles que os missionários eram mentirosos, pois estavam apenas os entretendo até a chegada do capitão-mor para escravizá-los. Como punição muitos indígenas foram mortos e outros foram mandados para o Maranhão.
      Essas mortes no atual Amapá foram dolorosas para ordem dos jesuítas que não quiseram mais ficar aqui e abandonaram a missão de Tabarapixi, onde ficou o padre Pfeil. Apenas os frades de Santo Antônio ainda continuaram a percorrer a região.

              Mapa  - Possível localizações das missões jesuíticas
               Fonte: Barão do Rio Branco (2012). Adaptado pelo autor.


     Portanto, constatou-se neste texto que a presença do catolicismo no Amapá vem desde o século XVII com as duas ordens missionárias e culmina com a fundação da Igreja de São José de Macapá em 1761, como símbolo máximo do cristianismo nestas terras tucujus. Apesar dos novos desafios da evangelização, algumas dificuldades ainda permanecem de forma semelhante ao passado distante, porém nunca faltou a fé para alcançar mentes e corações para o Cristo.
      Abaixo se tem um prospecto da Igreja de São José de Macapá feito em 1759, ou seja, antes da sua inauguração e que foi sendo alterado com o passar dos anos. O engenheiro foi o sargento-mor Thomas Rodrigues da Costa. A igreja estava localizada em frente à praça São Sebastião (atualmente Veiga Cabral), e as travessas que passavam pelos lados dela eram a Espírito Santo e Santo Antônio (MALCHER, 1998). Apesar de não ter sido construída integralmente conforme as plantas, é possível perceber a semelhança com a igreja atual (faça um exercício comparativo: observe se há as duas torres, a quantidade de janelas). Por que isso aconteceu? Possivelmente pelo estilo pragmático utilizado na construção de Macapá e pela falta de recursos. Essa região central a partir a igreja foi onde se originou Macapá, e é preciso uma ação adequada para a preservação do patrimônio histórico e urbanístico para que não se percam as referências com o passado.
                               
                                Projeto - Prospecto da Igreja de São José de Macapá em 1759
Fonte:  Renata Malcher (1998,  p. 162)


Referências

MALCHER, Renata. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: FAUP, 1998.

NASCIMENTO, Bruno Rafael Machado. Ad majorem Dei gloriam: missões jesuíticas setecentista no Oiapoque e os usos de documentos históricos para o ensino de História no Amapá. Rio de Janeiro: Autografia, 2018.

REIS. Arthur Cezar F. Limites e demarcações na Amazônia brasileira: a frente colonial com a Guiana Francesa. 2. ed. v.1. Belém: SECULT, 1993.

RIO BRANCO, Barão do. Obras do barão do Rio Branco III: questões de limites Guiana Francesa primeira memória. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2012.