1. Da “corrida ao ouro bíblico” à nova
historicidade das sagradas escrituras.
Em meados do século XIX, após a
descoberta na antiga cidade de Nínive da biblioteca do imperador assírio
Assurbanípal (668-627 a.C.), o mundo redescobriu as antigas grandes
civilizações da Mesopotâmia em tábuas de argila contendo escritos em sinais
mais tarde denominados cuneiformes. Civilizações estas de que até então, o
pouco que se conhecia estava contido nos livros da Bíblia, em informações
“escassas e pouco reveladoras, uma vez que estavam diretamente relacionadas com
a história do povo hebreu”.(CORREA, 200-, p. 2).
Tais descobertas deram início a uma espécie de “corrida ao ouro bíblico” que
propunha evidenciar arqueológicamente as sagradas escrituras. Outras ruínas
então, como as de Uruk, Ur e Nipur, começaram ser escavadas e revelaram mais inscrições
sobre o passado do Oriente Próximo.
O trabalho de decifração destas tábuas foi
realizado por vários pesquisadores, mas coube ao arqueólogo britânico George
Smith, a primeira tradução contendo um trecho da Epopéia de Gilgamesh: o relato
do dilúvio. Em 1872, Smith anuncia sua descoberta1 em um encontro da
Sociedade de Arqueologia Bíblica causando um “forte impacto na Europa (...) por
apresentar um texto pagão aparentemente antecipando a Arca de Noé”.(CORREA, 200-, p. 2).
Estas descobertas abalaram toda a
comunidade científica e religiosa do século XIX, laicizando muitos dos
objetivos iniciais, modificando métodos dos pesquisadores, e abrindo
precedentes para o questionamento da veracidade dos textos bíblicos.
Tábua IX da epopeia do dilúvio |
Nas últimas quatro décadas, diferentes estudos estão sendo realizados sobre os
temas levantados no século XIX, tanto pela comunidade científica como em grande
parte pela comunidade religiosa, fazendo com que sejam discutidos os elementos
mitológicos presentes na confecção dos livros que compõe o Pentateuco2, que vão desde a formação do mundo à existência histórica
dos seus patriarcas.
Há uma tentativa, nos
dias atuais, por parte de arqueólogos e historiadores de remontar a bíblia
separando o que é história do que são mitos e lendas.
"Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que
uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas
descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos
devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade
israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior. (…) A
história do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir
de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica.” (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, pp. V-VI, p. 1).
2. Da teogonia à teofania.
Paralelamente às discussões
bíblicas, as descobertas feitas pelas escavações remontam os três milênios que
antecedem à Cristo, onde a região entre os rio Tigre e Eufrates viu a ascensão
e queda de grandes civilizações como os sumérios, acádios, assírios e babilônicos.
Dos textos traduzidos, vários
deles incompletos devido ao estado de conservação dos mesmos, pôde-se extrair
muito da filosofia e da mitologia mesopotâmicas, onde podemos observar que “o
Oriente antigo, antes da Bíblia, e mesmo abstraindo-se dela, não desconhecia a
reflexão sobre o homem. (...) As questões fundamentais da existência, da
felicidade e da infelicidade, da relação com as potências cósmicas e com o
domínio misterioso dos deuses, do sentido da vida e das incertezas do destino,
já tinham neles um lugar de grande importância”.(GRELOT,
1980, p. 13).
Neste universo de descobertas, os
sumérios e os acadianos revelam-se fornecedores de costumes, rituais e modelos
literários a todos os povos do Oriente Médio3. Suas lendas, se
consideradas como o primeiro repositório das recordações históricas dos povos
do oriente antigo, “se transformaram, se esquematizaram, se reagruparam,
mudaram eventualmente de país, se ampliaram, às vezes, desmedidamente” (GRELOT, 1980, p. 13), onde cada cultura apropriou-se
de um mito conforme a sua ótica4.
Não
diferente desta regra, os israelitas inovaram ao excluir todo um panteão,
centralizando sua fé num deus único, propondo uma desmitização do universo
transformando as forças cósmicas ao que de fato são. A situação do homem diante
de Deus modifica-se totalmente, “embora, na prática, a adaptação da mentalidade
corrente dos israelitas a essa mudança radical se tenha processado lentamente e
com dificuldade” (GRELOT, 1980, p. 15),
mantendo grande parte do antigo modo de expressar religioso herdado dos
sumérios e acádios.
Desta forma, Israel começa a
escrever sua própria história, ora compilando fatos de seu próprio povo em
grandiosas lendas, ora adaptando mitos antigos à sua realidade e aos seus
propósitos. As histórias contidas na parte hebraica da bíblia, embora difíceis
de serem datadas pelos anacronismos que ali apresentam5, foram compiladas e ordenadas “principalmente, no tempo do
rei Josias (640-609 a.C.), para oferecer uma legitimação ideológica para
ambições políticas e reformas religiosas específicas”.(FINKELSTEIN; SILBERMAN,
2001, p. 14).
3. A Epopeia de Gilgamesh e sua influência sobre
demais literaturas do mundo antigo.
Considerada a mais antiga obra
literária da humanidade, a Epopéia de Gilgamesh na sua forma “tardia” (século
VII a.C.) como é difundida no Ocidente (TIGAY6 citado por ZILBERMAN
(1998, p. 58)), não foge à regra das obras de origens mesopotâmicas: um compilado
de lendas e poemas, cuja origem e veracidade perdem-se na difusão oral,
adaptação cultural e textos fragmentados.
As narrativas contidas na epopeia
deviam ser muito populares em sua época, pois são encontradas em várias versões
escritas por vários povos e línguas diferentes, sendo que as primeiras versões
da mesma, datam do Período Babilônico Antigo (2000-1600 a.C.), podendo ter
surgido muito antes7, pois o herói desta epopeia é o lendário rei
sumério Gilgamesh, quinto rei da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, que
teria vivido no período protodinástico II (2750-2600 a.C.)8.
Representação de Gilgamesh |
Devido à sua antiguidade e
originalidade, muito se especula sobre a influência desta sobre textos mais
difundidos e conhecidos pela humanidade, como os poemas épicos gregos Ilíada e
Odisséia de Homero, escritos entre VIII e VII a.C.. Mas a polêmica é maior
quando se comparados às narrativas do Pentateuco, a parte mais antiga do Velho
Testamento, datadas do Primeiro Milênio a.C.. No caso desta última, o que
legitima-nos a observar as influências, além de semelhanças impressionantes, o
próprio contexto histórico e geográfico. Contexto este em que a origem dos
hebreus e das grandes civilizações semitas são mescladas com a própria história
do povo sumério. Históricos períodos de cativeiro, onde a aculturação era, além
de inevitável pelas circunstâncias de sobrevivência, uma forma de dominação
ideológica:
“O povo
dominado era absorvido pelos nativos ao serem levados, havia a destruição total
da nacionalidade, do culto, das instituições, nada ficando que pudesse ser
lembrado a fim de que jamais alguém se encorajasse a agir em favor de uma
reconstrução. Todo o elemento que representasse qualquer valor moral ou
intelectual era desterrado e em seu lugar era posto outro povo trazido de
outras regiões.” (LOPES, 200-, p. 2).
4. A semelhança entre as narrações.
As semelhanças narrativas encontradas entre Epopeia de Gilgamesh e o Livro do
Gênesis iniciam-se logo nos primeiros versículos da bíblia, ou seja, na criação
do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei
Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do
rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus
Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que
fizesse Enkidu:
“A deusa
então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus
do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o
deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu”.(SANDARS, 1992, p. 94).
“Façamos
o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”.(GENESIS, cap. 1, ver.
26).
“Então
formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego
de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.(GENESIS, cap. 2, ver. 7).
Enkidu
foi criado inocente, longe da malícia da civilização, vivendo entre as
criaturas selvagens e compartilhando a natureza com elas:
“Ele era
inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia
grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os
animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava
com a água”.(SANDARS, 1992, p. 94).
“Eis que
vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda
a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para
mantimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos
os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para
mantimento”. (GENESIS,
cap. 1, ver. 29-30).
O rei Gilgamesh, sabendo da
existência de Enkidu, incube uma missão a uma das prostitutas sagradas do
templo da deusa Ishtar (deusa do amor e da fertilidade): seduzir Enkidu e
trazê-lo para dentro das muralhas de Uruk. Enkidu deixou-se seduzir pela
rameira e perdeu sua inocência, além de seu poder selvagem, tornando-se
conhecedor da malícia do homem. Arrependido, lamenta-se, mas a rameira
consola-o enfatizando as vantagens desta nova vida que está por vir:
“Enkidu
perdera sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os
pensamentos do homem ocupavam seu coração”.(SANDARS,
1992, p. 96).
“Olho
para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr
pelos campos como as feras do mato?” (SANDARS, 1992,
p. 99).
“Porque
Deus sabe que no dia em que comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus,
sereis conhecedores do bem e do mal.” (GENESIS, cap. 2, ver. 5).
Nesta comparação com a tentação no Éden, não identificamos diretamente
os fatos, mas sim, as idéias. A prostituta sagrada, condenada também em outros
livros da bíblia, pode ser compilada como o fruto proibido, a serpente e a
própria Eva, com o poder de seduzir o homem e tirar sua inocência com falsas
promessas.
Representação de Gilgamesh e Enkidu |
Enkidu, já na cidade de Uruk,
enfrenta o rei Gilgamesh em combate. Vencendo-o, é reconhecido pelo rei como
irmão, pois este jamais havia enfrentado alguém com tamanha força. Formando-se
então uma grande amizade que protagoniza grandes aventuras e tragédias ao longo
da epopéia.
Gilgamesh e Enkidu partiram então
para a floresta de cedros (provavelmente, o atual Líbano), onde enfrentaram o
monstro Humbaba, a sentinela da floresta.
Este se irrita com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação direta entre os fatos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:
Este se irrita com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação direta entre os fatos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:
“… tu, um
mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!” (SANDARS, 1992, p. 119).
“…
maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os
dias da tua vida”.(GENESIS, cap. 3, ver. 16).
“No suor
do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste
formado”.(GENESIS, cap. 3, ver. 19).
Os heróis, com a ajuda de Shamash (deus sol, protetor de Gilgamesh), matam o
monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. Fato que irritou o poderoso Enlil (deus
da terra, do vento e do ar universal), que exigiu a vida de um dos heróis pelo
insulto.
A deusa Ishtar, vendo a força e
beleza do herói, apaixona-se por Gilgamesh que a despreza, provocando a cólera
da deusa. Então, Ishtar enviou a terra, um monstro com a missão de destruir o
herói: o Touro Celeste. Mas a dupla de heróis novamente é vitoriosa. Então,
Enkidu zomba da deusa derrotada atirando-lhe pedaços do touro mutilado. Enlil
enfurecido com a atitude do mortal decide enfim qual dos dois heróis deverá
morrer. Enkidu então adoece e, sucumbindo à doença, impulsiona o rei Gilgamesh
a sua missão final: a busca da imortalidade.
A primeira semelhança encontrada pelos tradutores das tábuas em escrita
cuneiforme é a mais impressionante. Foi a mola propulsora de toda a discussão
sobre a veracidade dos textos bíblicos, pois a descrição do dilúvio não só é a
mais bem conservada tábua de toda a epopéia, mas a mais rica em detalhes e
semelhanças com a descrição no Gênesis. Além de que, outras narrativas do
dilúvio foram encontradas em forma de poemas isolados e com outros personagens,
como as tábuas de Atra-Hasis, a Epopéia de Erra, e os textos do rei Ziusudra9.
Na epopéia, Gilgamesh parte em busca da imortalidade, e para isso, precisa
obter este segredo dos deuses com o imortal Utnapishtim (Noé do Gênesis). Para
encontrar o imortal, Gilgamesh enfrentou uma longa jornada, cheia de perigos e
provações. Ao encontrar Utnapishtim, ouve que este não poderá lhe tornar
imortal, mas poderá revelar ao herói como se tornara um e conta do dia em que
os deuses, desgostosos com a sua criação (a humanidade), resolveram eliminá-la
da terra:
“Naqueles
dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um
touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e
disse aos deuses reunidos em conselho: ‘O alvoroço dos humanos é intolerável, e
o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.’ Os deuses então
concordaram em exterminar a raça humana”.(SANDARS,
1992, p. 149).
“Viu o
Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era
continuamente mau todo desígnio do seu coração”.(GENESIS, cap. 6, ver. 5).
“A terra
estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência”.(GENESIS, cap. 6, ver
11).
“Farei
desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis,
e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito”.(GENESIS, cap. 6, ver
7).
Ea (deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e protetor da
humanidade), avisa Utnapishtim em um sonho das intenções de Enlil e orienta-o
de como sobreviver à catástrofe que estaria por vir:
“... põe abaixo tua casa e
constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os
bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e
constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a
boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés
seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o
barco a semente de todas as criaturas vivas. (...) Eu carreguei o interior da
nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus
parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os
artesãos”.(SANDARS, 1992, p. 149-151).
“Faze uma
arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos, e a calafetarás com
betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o
comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura de trinta. Farás ao seu redor
uma abertura de um côvado de alto; a porta da arca colocarás lateralmente;
farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro”. (GENESIS, cap. 6, ver 14-16).
“…
entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos.
De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás
entrar na arca, para os conservares contigo”.(GENESIS, cap. 6, ver. 18).
Enlil então envia uma tempestade de grandiosas proporções, fazendo com que toda
a terra desaparecesse sobre as águas:
“Caiu a
noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva.(...) Por seis dias e seis
noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o
mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em
guerra.” (SANDARS, 1992, p. 151-153).
“… nesse
dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as portas do céu se
abriram, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta
noites”.(GENESIS, cap. 7, ver. 11-12).
E toda a humanidade foi exterminada:
“… agora eles (humanos) flutuam no oceano como ovas de peixe”. (SANDARS, 1992, p. 152).
“Assim
foram exterminados todos os serem que havia sobre a face da terra …” (GENESIS, cap. 7, ver. 23).
Com o passar dos dias, a tempestade ameniza-se e o
dilúvio começa a serenar:
“Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou”.(SANDARS, 1992, p. 153).
“Deus fez
soprar um vento sobre a terra e baixaram as águas. Fecharam-se as fontes do
abismo e também as comportas dos céus, e a copiosa chuva do céu se deteve”. (GENESIS, cap. 8, ver. 1-2).
Após a calmaria do grande oceano que se formara, Utnapishtim solta uma
pomba para ver se há terra firme para que então possa desembarcar:
“Na
alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para
longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei uma
andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar,
retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela
comeu, voou de uma lado para outro, grasnou e não mais voltou para o barco”.(SANDARS, 1992, p. 153).
“Ao cabo
de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca, e soltou um corvo, o
qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas sobre a terra.
Depois soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície
da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca;
porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a
recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias, e de novo soltou a
pomba for a da arca. A tarde ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de
oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra.
Então esperou ainda mais sete dias, e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou
a ele”.(GENESIS, cap. 8, ver. 6-12).
Após a bonança, já em terra firme e grato ao deus Ea por ter lhe salvo a vida,
Utnapishtim prepara um sacrifício aos deuses:
“Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a
nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da
montanha em oferenda aos deuses”.(SANDARS, 1992, p.
153).
“Então
Noé removeu a cobertura da arca, e olhou, e eis que o solo estava
enxuto”.(GENESIS, cap. 8, ver 13).
“Levantou
Noé um altar ao Senhor, e, tomando de animais limpos e de aves limpas, ofereceu
holocaustos sobre o altar”.(GENESIS, cap 9, ver 20).
Enlil, furioso com Ea por ter permitido que um humano sobrevivesse e conhecendo
o segredo dos deuses, viu-se sem alternativa que não a de transformar
Utnapishtim em um imortal, para que sua maldição de que nenhum mortal
sobrevivesse se completasse.
Gilgamesh desapontado por não ter tido sucesso em busca da imortalidade,
prepara seu retorno para Uruk, mas é abordado pela esposa de Utnapishtim que,
compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade em
que, nas profundezas do mar, havia uma planta maravilhosa, e quem a comesse,
seria eternamente jovem. O herói então mergulha no mar profundo, ferindo-se,
mas obtendo a tão desejado segredo.
Tomado de rara compaixão, Gilgamesh decide não comer sozinho o maravilhoso
fruto, mas sim dividi-lo com os anciãos da cidade de Uruk. No retorno para
casa, Gilgamesh é surpreendido por uma serpente marinha que lhe rouba a flor,
perdendo para sempre o segredo da imortalidade:
“Se
conseguires pegá-la (a planta sagrada), terás então em teu poder aquilo que
restaura ao homem sua juventude perdida. (…) Vem ver esta maravilhosa planta.
Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. (...) mas nas
profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que
emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou”.(SANDARS,
1992, p. 160).
Apesar dos fins da ação de comer
o fruto sejam diferentes (a morte e a imortalidade), podemos fazer uma analogia
da função da serpente em roubar a imortalidade do homem: sendo tirando-lhe a
oportunidade da vida eterna pela sua obtenção, como na Epopéia de Gilgamesh;
sendo condenando-lhe a morte pela cessão do fruto ao homem, como no livro do
Gênesis. Gilgamesh então ficou desolado e abatido, pois além de fracassar em
sua missão, perdera para sempre o irmão Enkidu, restando-lhe apenas,
melancolicamente esperar o dia de sua morte chegar.
No livro do Gênesis, não encontramos somente semelhanças com a Epopéia de
Gilgamesh, mas com outros textos antigos, como o sumeriano Mito de Dilmum onde
o deus Enki, o senhor das águas profundas e do abismo que suporta a terra; e
Nintu, a virgem pura, deusa que presidia aos partos; habitavam sozinhos num
mundo cheio de delícias sem que nada existisse além do par divino,
caracterizando uma descrição muito semelhante do que seria e onde seria o
jardim Éden:
“E
plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o
homem que havia formado. (...) E saía um rio do Éden para regar o jardim, e
dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. (...) O nome do terceiro rio é
Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates”. (GENESIS, cap. 2, ver. 8-14).
5. Considerações finais.
É impossível afirmar a influência direta da Epopéia de Gilgamesh sobre a
escrita do livro do Gênesis, pois tanto um como o outro poderiam ter sido
influenciados por histórias ainda mais antigas e difundidas no Oriente, ao
mesmo tempo em que é inegável que o mundo situado entre o Mediterrâneo e os
Montes Zargos, onde havia intensa circulação de mercadores de diferentes etnias
e religiões variadas, era pequeno demais para descartar qualquer influência
cultural entre eles.
Os hebreus, possivelmente muito antes de seus períodos de cativeiro na Babilônia
e Assíria, já tiveram contato com as lendas e mitos sumério-acadianos e que por
várias razões, os utilizaram na formulação de suas próprias lendas, o que
sugere que seu deus, Jeová, toma por empréstimo características de deuses como
Anu, Enlil e Ea, seja criando a terra e o homem, seja julgando-os por seus
atos, seja compadecendo-se de seu povo e os protegendo.
Acreditamos ser impossível obter
conclusões definitivas sobre as influências de um texto sobre o outro, ou
principalmente, da formação de um pensamento religioso sem a existência do
pensamento antecessor, sem que se faça juízo de valores como é recomendado a um
historiador, mas ao se estudar o contexto em que o Gênesis é idealizado e
escrito, tomando aqui, palavras de Finkelstein e Silberman, observa-se que "a saga histórica contida na Bíblia (...) não foi uma
revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana”.10
Notas
1SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes,
1992, p. 11-12.
2Os 5
primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
3GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p.
14.
4CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história
cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.
211-238.
5FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The
Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of
Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, p. 38.
6TIGAY, Jeffrey. On the evolution of the Gilgamesh epic.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 11.
7ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS,
Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO:
LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ...
trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 58.
8BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura
na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 126.
9CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia.
Valencia: EDICEP, 1984, p. 9.
10FINKELSTEIN; SILBERMAN. The Bible ... 2001. p. 13.
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SUBLETT,
Kenneth. Epic of Gilgamesh. Disponível em http://www.piney.com,
2003. Acesso em: 27 jul. 2003.
Texto elaborado por Eric Thomas Follmann